Raquel tem quarenta anos, dois filhos e um olhar que carrega um cansaço antigo, desses que não vêm das noites mal dormidas, mas da alma que há muito tempo se encolheu para caber onde nunca coube.
Ela cresceu em uma casa onde falar alto era falta de respeito, chorar era drama, e discordar era sinônimo de ingratidão. Aprendeu cedo a medir palavras, gestos e até respirações para não incomodar.
Na escola, diziam que era tímida. Na verdade, era treinada em silêncio. O corpo dela sabia que ser autêntica tinha um preço alto demais: o da rejeição. Em casa, o amor vinha condicionado — era preciso agradar, não criar confusão, não ser “difícil”. Assim, Raquel foi se tornando especialista em desaparecer um pouco de si para manter o amor dos outros inteiro.
A Gestalt-terapia chamaria isso de ajustamento criativo: uma forma inteligente e dolorosa que o ser encontra para sobreviver ao ambiente em que vive. Raquel não nasceu silenciosa. Ela se fez silenciosa. Cada vez que escondia uma opinião, engolia um choro, sorria quando queria gritar — o corpo aprendia a se encolher um pouco mais. Era o jeito que ela encontrou de permanecer em contato com quem amava, mesmo que isso custasse o contato consigo mesma.
Anos depois, já adulta, Raquel buscava compreender por que se sentia tão cansada de tentar agradar todo mundo. “Eu não sei mais o que eu quero”, dizia. O que ela não percebia é que seu sistema emocional carregava a memória de uma menina que aprendeu que ser autêntica era perigoso. Gabor Maté explicaria que, diante do conflito entre apego e autenticidade, a criança sempre escolhe o apego. O amor é questão de sobrevivência — e, para continuar sendo amada, Raquel precisou esconder partes inteiras de quem ela era.
E assim ela cresceu: eficiente, responsável, admirada. Mas, por dentro, havia um vazio. Um tipo de exaustão que não se cura com descanso, porque não vem do corpo, vem da alma que se moldou demais. Quando alguém elogiava sua força, ela sorria, mas sentia uma pontada de tristeza. “Se sou forte, é porque precisei ser”, pensava.
Foi num processo terapêutico que ela começou a se reencontrar. Com o tempo, foi percebendo que o silêncio que um dia a protegeu agora a aprisionava. Que o medo de decepcionar os outros a impedia de viver a própria verdade. John Bowlby diria que esse é o eco de um apego inseguro: quando a necessidade de aceitação é tão grande que a pessoa se desconecta de si para garantir o vínculo.
Aos poucos, Raquel começou a experimentar o risco da autenticidade — dizer “não” quando queria dizer não, admitir o cansaço, chorar na frente dos filhos. E algo bonito aconteceu: o amor não foi embora. O mundo não desabou. Ao contrário, ela sentiu uma leveza nova, um alívio que vinha do simples gesto de poder existir inteira.
Hoje, quando fala sobre o passado, Raquel não o faz com raiva, mas com ternura. Entende que seus pais também vieram de silêncios, que carregavam histórias de dor e sobrevivência. Ela não romantiza, mas compreende. E, nesse reconhecimento, vai se libertando da necessidade de culpar — e começa a se responsabilizar por si.
Raquel ainda se pega, às vezes, buscando aprovação, mas agora percebe. E quando percebe, sorri. É nesse instante que a cura começa: quando o velho padrão é visto com compaixão, não com julgamento.
Raquel é uma personagem fictícia. Mas poderia ser eu, você, ou tantas pessoas que aprenderam a se proteger deixando de ser quem são.
Este texto é um convite — não para culpar o passado, mas para escutar o que ele ainda sussurra dentro de nós. Porque, como diria Alexandre Coimbra Amaral, “a vida começa de novo toda vez que a gente se permite ser de verdade”.