Este texto foi inspirado pelo vídeo Adultização, do YouTuber Felca, a quem agradeço imensamente por trazer essa temática para discussão em nível internacional. Era — e continua sendo — necessário jogar luz sobre a exploração das redes sociais na infância, sobre a monetização de imagens de crianças e adolescentes, e sobre o risco concreto de pedofilia que atravessa essa prática. Ao trazer esse debate, Felca não apenas expôs dados e exemplos, mas também ajudou a revelar o que acontece quando a infância é transformada em palco de consumo.
A adultização infantil é uma violência silenciosa que atravessa casas e narrativas. Quando a infância é antecipada — seja pela erotização da imagem, pela exposição contínua nas redes, pela transformação em “produto” ou pela parentalização da criança, ou seja, a responsabilidade de cuidar de irmãos e da casa — a criança perde etapas fundamentais do desenvolvimento. Nesse processo, a verdade, o limite e a presença dos adultos funcionam como pilares de proteção; a sua ausência abre espaço para marcas que podem perdurar pela vida.
O papel essencial dos adultos
Para a criança, o adulto é referência de sentido e segurança. Quando cuidadores validam a exposição, minimizam o próprio desconforto ou priorizam a visibilidade em detrimento do bem-estar, a criança internaliza que o valor está na performance. Mostrar que sentir-se inseguro, confuso ou incomodado diante da exposição é legítimo e agir para proteger são gestos fundamentais. Proteger não é proibir por medo exagerado; é oferecer contorno: regras claras sobre imagem, tempo para brincar, sono, limites na participação em conteúdos e, sobretudo, a disponibilidade emocional para acolher dúvidas e medos.
A erotização precoce é uma das faces mais cruéis dessa adultização. Quando o corpo infantil é lido e usado com sentido sexual, antes que a criança tenha qualquer compreensão do assunto, ela perde a possibilidade de construir intimidade com o próprio corpo em segurança. Não se trata de censura moral, mas de reconhecer que sexualidade tem tempo de maturação. O cuidado consiste em educar com clareza, em palavras que correspondam à idade, e em criar ambiente onde a criança não seja objeto de consumo.
Exemplos públicos — espelhos coletivos
Vemos reflexos dessa dinâmica em trajetórias públicas. Nomes como Macaulay Culkin, Britney Spears, Justin Bieber e Lindsay Lohan nos lembram que a exposição precoce pode deixar sequelas: depressão, dependência de atenção externa, dificuldades de regulação emocional, uso de substâncias, ideações suicidas. Esses relatos ajudam a nomear o que também acontece fora dos holofotes, em famílias comuns.
O que muda é o palco; o dano — quando há ausência de proteção — é o mesmo: uma sensação precoce de responsabilidade, a crença de que amor e aceitação dependem de desempenho.
Sinais, intervenção e cuidado prático
Cada criança responde de maneira singular, mas há sinais que merecem atenção: perda do prazer em brincar, ansiedade relacionada a likes e comentários, comportamentos de adultização (assumir tarefas da casa em excesso), desconforto com fotos e vídeos, e relatos de coerção para participar. Intervir é restaurar o direito ao tempo de infância: reduzir exposição, criar rituais de privacidade, escutar sem julgamento, buscar apoio terapêutico quando necessário. Limites não esmagam a espontaneidade; ao contrário, oferecem o terreno seguro onde a criança pode crescer.
Se a adultização aconteceu com alguém — se na sua infância você foi empurrado para papéis que não eram seus, exposto ou erotizado — é importante nomear isso sem culpa. Dizer “isso foi errado” dá legitimidade ao que se viveu. A escuta empática, a terapia, grupos de apoio e pequenas práticas de autocuidado ajudam a criar um novo enredo: o de quem reaprende a existir sem performance. Permitir sentir, repetir perguntas sem pressa, guardar memórias com ternura e criar rituais de reparo (escrever, plantar, desenhar) são modos de acolher a criança que ficou para trás.
Caminhar lado a lado
A reconstrução não é linear; vem em ondas, com avanços e recuos. Por isso, o que mais ajuda é a presença constante e não o gesto espetacular. Para quem cuida de crianças, o convite é simples e profundo: escolha a proteção.
Gabor Maté vai nos dizer que “crianças não ficam traumatizadas porque se machucam, elas se traumatizam porque foram deixadas sozinhas com aquilo que as machucava”. Cuidar da criança — hoje e sempre — é oferecer companhia na dor, e é isso que torna possível florescer, em segurança, por toda a vida.
Na dúvida, opte por limitar a exposição, por priorizar sono, brincadeira e amigos, por colocar a raiz antes da vitrine.
E para quem carrega marcas antigas, lembre-se de que o presente permite novos cuidados. Reescrever a relação com a própria história é um ato de coragem — e de amor.
A infância é o chão que o sujeito vai caminhar por toda a vida, por isso o que protegemos agora ecoa para sempre.